Quando entrei no quarto, o Sr. Pedro encontrava-se deitado, imóvel, tranquilo. Apesar de o seu corpo ainda emanar calor, o coração já não batia no seu peito.
Um mês antes, em Paris, tinha telefonado à filha que vivia em Portugal. Como muitos, fora para França ainda novo, procurando melhores oportunidades de vida. Viveu lá até aos 77 anos. Mas quando uma doença incurável o surpreendeu e o arrancou à vida, o pedido que lançou, a centenas de quilómetros, para a sua filha, foi a vontade de vir morrer à sua terra, a Portugal.
Chegou até nós numa fase terminal da sua doença e da sua existência. Veio à urgência por o seu estado geral estar a declinar acentuadamente. A Medicina já nada lhe tinham a oferecer em termos de tratamento ou cura. Falámos com a família sobre a sua situação. Que qualquer tentativa que fosse feita, resultaria em maior agressão do que benefício para o doente.
A Medicina e, em especial, a Cirurgia, vive constantemente do equilíbrio destes dois vectores. A intervenção / agressão que se faz no corpo humano face ao benefício que se prevê que esse procedimento traga. Desde o mais pequeno comprimido, com as suas reacções adversas, até à cirurgia “major” de excisão de orgão gangrenado. Agride-se na procura de um benefício. Quando a soma dos vectores pende para o lado da agressão então o melhor é mesmo nada fazer. Este um ponto díficil na actuação médica. O nada fazer. Quando alguém doente procura um médico, espera sempre uma acção da sua parte para minorar o seu sofrimento. Por seu lado o médico é formado para intervir (mas sempre no benefício do doente). O médico consciente tem o dever de racionalizar sempre os riscos e potênciais efeitos deletérios que a sua actuação possa ter, mesmo que a coacção do doente seja intensa para que intervenha.
Neste caso, dada a história e declinio progressivo do doente, a família teve oportunidade de ir fazendo a despedida e o luto progressivo. Teve tempo de interiorizar a partida do seu ente querido. Aceitaram lucidamente a decisão partilhada de não se intervir, de confortar e dar o apoio final para que a partida fosse feita sem sofrimento.
No final da manhã, enquanto acabava de rever as terapêuticas dos doentes internados, fui chamado ao quarto do Sr. Pedro. Encontrei-o parado, sem respirar, sem batimento cardíaco, olhos fixos e dilatados, sem reflexos. O Sr. Pedro tinha partido, sem dor, em paz, realizando assim o seu último desejo. Morrer na sua terra.